Caligrafia zen: aprendendo a fluir (parte 1)

caligrafia dragão ascendente de Angelo Mokutan

Praticar caligrafia é perda de tempo? Tive duas experiências com caligrafia que para mim responderam a essa pergunta.

A cultura contemporânea japonesa é bem materialista, incitando as pessoas a valorizarem o benefício material e egoísta, de preferência a curto prazo. Nestes tempos modernos (salve Chaplin!) usamos mais teclados do que as nossas mãos para escrever. Quanto mais jovem o japonês, menos ele sabe escrever os ideogramas chineses de cor. Nesse ambiente, quem vai dedicar seu tempo à caligrafia?

Eu sempre gostei de desenhar, e quando comecei a estudar japonês no Instituto de Cultura Oriental (ICO, em BH/MG), tive a sorte de ter aulas de caligrafia com pincel. Fora a ajuda para aprender a lógica dos ideogramas, eu adorava preparar o próprio nanquim, esfregando uma barrinha de pigmento num recipiente com água, e perder a noção do tempo praticando caligrafia usando folhas e folhas de jornal como papel.

Quando vim ao Japão pela primeira vez como intercambista, frequentei uma escola japonesa por um ano. Após as aulas eu frequentava o clube de belas-artes (que na prática era desenhar quadrinhos e ilustrações), mas participava do clube de caligrafia também, sempre que podia. Graças a isso tive uma experiência simples, mas que marcou minha vida.

Caligrafia ou Almoço?

Era o horário do almoço, num dia com 4 aulas de manhã e 2 de tarde. Naqueles meus 18 anos, por questões biológicas e psicológicas, comer era algo muito importante, e eu estava com FOME. No começo desse precioso horário de almoço, a professora de caligrafia me chamou para fazer uma obra de caligrafia para uma exposição.

Eu não entendi muito bem por que justo naquela hora, afinal eu estava com fome e só tinha aquele horário para comer. Porém, por algum motivo que já não me lembro bem, eu escolhi ir fazer a caligrafia. Eu me lembro sim de que, enquanto escrevia a peça de caligrafia, a fome era enorme. E que naquele dia não consegui almoçar indo direto para as aulas da tarde.

Passado um tempo, a professora de caligrafia me chamou para ir ver a tal exposição. Ainda sem entender muito bem do que se tratava, fui. Chegando lá, vi que era o Concurso de Todos os Colégios de 2º Grau do Japão. E a minha peça de caligrafia tinha ao seu lado uma flor feita de fitas brilhantes, e no meio estava escrito: Prêmio do Júri.

Esse episódio foi marcante para mim porque percebi que às vezes é melhor não dar ouvidos à voz dos instintos. Muitos sábios, do Zen e de outras escolas, falam que existe uma dimensão além dessa dos instintos de sobrevivência (como foi o meu caso com a fome) e reprodução. Essa vivência que tive de deixar a fome física de lado e fazer algo que alimentasse a alma, tendo ainda por cima um reconhecimento como resultado, confirmou esses ensinamentos para mim. Isso foi muito importante para minha carreira de quadrinhista, pois tive que escolher entre comer ou trabalhar várias vezes, e isso ainda se repete.

No próximo artigo eu falarei da minha experiência com o Kakizome, a primeira escrita do ano, e um pouco da relação da caligrafia com o Zen.

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E você, o que acha de deixar de comer por decisão própria para fazer outra coisa? Deixe seu comentário mais abaixo.

Até a próxima e fique Zen!

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