“Ser quadrinista é fácil!” 5 enganos comuns sobre essa profissão

História em Quadrinhos é coisa de criança?

“Você é quadrinista? Deve ser ótimo ficar o dia todo lendo quadrinhos!” disse o meu conhecido, um americano já de certa idade, fluente em japonês, pioneiro no setor de Tecnologia da Informação no Japão, com muitos amigos na megalópole de Tokyo, onde morava já havia algumas décadas. Mesmo com esse histórico impressionante e ainda sendo patrocinador de artistas, ele demonstrou estar enganado sobre algo básico da minha profissão. Neste artigo vou comentar sobre esse e outros enganos comuns sobre a vida de quadrinista.

1. O quadrinista fica lendo quadrinhos o dia todo

Engano básico: quadrinistas são pagos para criar quadrinhos, não para lê-los. Além disso, criar quadrinhos não é como um emprego onde se trabalha num horário fixo e se tem férias de vez em quando. É uma indústria muito competitiva, é preciso trabalhar duro, não dá tempo para ficar lendo quadrinhos. Quando eu estava produzindo a minha série mensal de mangá “Leonora” (que me deu tanto trabalho que tive problemas de saúde), o tempo que me restava para descansar tinha que ser investido em pesquisa sobre a Roma antiga, para garantir uma história de qualidade.

É claro que para ser um bom quadrinista é preciso ler bastante e conhecer bem a mídia dos quadrinhos. Porém eu fiz isso quando era estudante, e mesmo assim não conhecia tantas obras como os meus amigos que eram exclusivamente fãs, pois na época eu já dedicava um bom tempo ao desenho. O trabalho de quadrinista é como a maioria dos empregos: você seria chamado a atenção severamente se ficasse lendo quadrinhos durante o horário de trabalho, e se insistisse nisso, a sua produtividade seria tão afetada te levaria a ser demitido.

2. O quadrinista desenha o tempo todo

Quadrinhos, como qualquer outra arte, não se vende sozinho, então não posso ficar o tempo todo desenhando.

Como um quadrinista preciso dominar a minha arte sim, mas também preciso ter reuniões com editores, entrevistar monges para o Tudo Zen Quadrinhos, vasculhar bibliotecas e visitar templos buscando material de referência, estudar sobre o Zen, aprender a usar as redes sociais efetivamente, participar de eventos físicos e online, estudar japonês… E às vezes até fazer alguns bicos para ajudar no orçamento do estúdio.

Escrever esse texto educativo, para que você compreenda melhor o trabalho dos quadrinistas e o valor dele, faz parte dessas atividades extras.

Desenhar é uma das partes que mais gosto no meu trabalho, e acredito que para muitos seja o mesmo. Porém já dizia o Davi, meu amigo veterano no caminho do mangá: “Quando você é um mangaká em tempo integral, tem dias que você simplesmente não quer desenhar”. É preciso arejar a cabeça às vezes.

3. Ser quadrinista é tranquilo, pois fica-se em casa

Minha esposa um dia voltou do trabalho assalariado dela, cansada e de mau-humor, e disse: “por que você não lavou a louça, se ficou em casa direto?”

A resposta é simples: porque eu estava em casa, trabalhando. E ela não percebeu que o dia de trabalho dela tinha terminado, mas o meu não. Para mim são comuns os dias de trabalho de 12 horas, se estendendo a até jornadas de 36 horas sem dormir à medida que o prazo de entrega se aproxima.

Trabalhar em casa também requer disciplina, pois a geladeira cheia de coisas gostosas está logo ali, ninguém vai chamar sua atenção se você assistir um filme, ou der uma cochilada que acaba durando várias horas. Naturalmente, cair nessas tentações significa também a queda na qualidade do quadrinho.

4. Para ser um quadrinista é só ter inspiração

“Deve ser muito bom ser quadrinista! Ficar em casa à vontade e, quando tiver inspiração, criar o que quiser…” me disse uma entrevistadora (que por sinal não entendia nada de quadrinhos).

Thomas Edson resumiu bem essa questão dizendo que “um gênio é 1% inspiração e 99% transpiração”*. Inspiração é importante, porque quadrinhos é uma mídia onde pode-se fazer o que não é possível em outras. Comparando-se com filmes por exemplo, não há tantas restrições de orçamento, atores, cenário, efeitos especiais…

No entanto a inspiração é um flash que deve ser percebido e trabalhado. No meu mangá da Leonora, esse flash resultou em um ano de trabalho intenso. No caso do Tudo Zen Quadrinhos, já são três anos e ainda não terminou.

Explicando-me mais um pouco: uma boa ideia não significa uma boa história. Deve-se trabalhar para que os personagens sejam consistentes, a narrativa não seja confusa nem chata, os diálogos sejam curtos mas interessantes, os quadrinhos fluam de um para o outro, os desenhos mostrem a mensagem, a arte-final não mate o movimento do desenho a lápis… Algumas dessas etapas são refeitas várias vezes para se melhorar a qualidade da obra.

Que fácil seria se ser quadrinista fosse só olhar para a lua e ter inspiração!

5. É fácil ficar rico sendo quadrinista

Já vi essa ideia em títulos de livros japoneses sobre teoria de Quadrinhos. “Basta ter sucesso com uma obra para se tornar milionário”, diziam. Eles me pareceram ser propaganda do autor ou de um curso disfarçada de livro.

Mesmo quadrinistas japoneses bem sucedidos em revistas semanais não recebem tanto pelo árduo trabalho feito. Syuho Sato, autor de Say Hello to Black Jack, já escreveu um livro sobre esse assunto (Mangaka bimbo – O quadrinista pobre).

Trabalhar como quadrinista é ser um freelancer, sem contrato na maioria das vezes, e sem um sindicato protetor de direitos trabalhistas no caso do Japão. A experiência mais perigosa que tive nesse contexto foi uma encomenda de um pôster para um evento.

Eu havia dado um orçamento abaixo da média por falta de noção de mercado, e depois de duas semanas trabalhando no pôster, me ligaram dizendo que o evento fora cancelado, devido a problemas do comitê de organização. O que mais me doeu não foi o 20% de “desconto” que tive que dar para garantir alguma remuneração, mas foi um grande amigo meu que fez essa ligação desvalorizando o meu trabalho para que eu desistisse do pagamento. Acho que esse amigo queria agradar aos organizadores do evento. Bom, acabou virando ex-amigo.

Resumindo: Vida de quadrinista não é fácil

Agora que você sabe um pouco mais sobre a realidade dos quadrinistas, deve estar se perguntando por que mesmo com todos esses enganos e dificuldades eu sou quadrinista?

Vejo as dificuldades da profissão como oportunidades de crescimento como ser humano. Poder compartilhar, através dos quadrinhos, as descobertas positivas de um caminho árduo é algo que sempre gostei nessa mídia, e é o que gostaria de oferecer também.

Pode ser importante para alguém que esteja com um vazio dentro peito, sem saber como sair de um problema, como já me aconteceu (e acontecerá) de vez em quando.

A ignorância é uma benção? Não quando se tem um problema por causa dela.

No caso dos quadrinhos, quanto mais se conhece sobre eles, mais se consegue desfrutar desse rico meio de comunicação, dessa arte.

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E você, o que pensa sobre a idéia de que “quadrinhos é coisa de crianças”? Deixe seu comentário mais abaixo.

Até a próxima e fique Zen!

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