Praticar caligrafia para quê? Continuando com as reflexões sobre o tema, falarei sobre a experiência mais recente que tive com caligrafia.
No Japão há várias tradições no ano novo: ver o primeiro nascer-do-sol do ano (Hatsuhinode 初日の出), visitar um templo pela primeira vez no ano (Hatsumoude 初詣), ver a sorte com o primeiro sonho (Hatsuyume 初夢)… Cada uma tem um seu significado. Desta vez falarei sobre uma tradição que experienciei neste ano: a primeira escrita do ano (Kakizome 書初め).
Originalmente esse costume era só da nobreza no Japão da era Heian (794-1185). Sentava-se numa direção auspiciosa de acordo com a sabedoria tradicional chinesa, fazia-se nanquim com a água recém-retirada de um poço no ano novo, e escrevia-se poesia chinesa com palavras também auspiciosas. As escritas eram queimadas, e quanto mais altas as cinzas voassem, maior seria o progresso do autor em caligrafia.
Atualmente, falando-se de maneira simples, o Kakizome consiste em escrever uma ou mais palavras, frequentemente ideogramas chineses, como um desejo para que o ano que se inicia seja auspicioso. Há alguns eventos significativos para essa tradição, onde alguns milhares de pessoas de todo o país se reúnem no Budokan em Tokyo para escreverem juntas, e uma exposição nacional onde os melhores trabalhos de caligrafia são premiados pelo governo. Porém, de uma maneira geral, me parece que a tradição está se perdendo.
Meu Kakizome
Neste ano tive a oportunidade de fazer o Kakizome. Porém, que palavra escolher? Lendo o jornal, tive uma agradável surpresa ao ver que, dentre as palavras mais escolhidas para o Kakizome, está a Palavra Zen Ichigoichie, que significa apreciar cada momento, pois eles são únicos (explicação com quadrinhos aqui).
Ichigoichie é um termo que aprecio, mas eu não senti que era exatamente o que necessitava neste ano. Sem me deixar levar pelo ranking de Kakizome então, procurei uma palavra numa breve meditação. Encontrei o Nagare (fluir). Nagare não é uma Palavra Zen por si só, mas o Zen fala da importância do fluir em várias oportunidades. Este fluir não significa ser levado pela corrente, seja de modas ou de pensamentos. Significa remover os obstáculos existentes, e não criar outros novos, para que as coisas fluam, no meu entendimento.
Para representar bem essa ideia, escolhi a caligrafia cursiva abreviada, Sousho. Apesar de ser de difícil leitura, eu acho-a muito bonita por representar ideogramas com pocas pinceladas. Como meu propósito é fluir, decidi tentar fazer tudo em uma pincelada só. Mal comecei a praticar e já tive que remover alguns pensamentos para me concentrar bem, conseguir chegar numa forma bonita do ideograma. Foram folhas e folhas de jornal, e mais algumas de papel japonês para fazer a peça final.
O interessante é que a prática de caligrafia me faz perder a noção do tempo. Os traços do pincel refletem a técnica e sobretudo o estado de espírito do praticante. Boa postura, coluna reta, respiração profunda… Parece meditação. Ou melhor, é meditação. Na medida em que se harmoniza interiormente, o que se escreve é expresso com mais harmonia. Por isso o Zen tem muito em comum com o caminho da caligrafia, o Shodou.
Por esses motivos, praticar caligrafia é muito bom ao meu ver. É uma oportunidade de se conhecer objetivamente, e superar os próprios limites, crescer não só na técnica mas também como ser humano.
Essas características se aplicam a outras formas de arte japonesa também, como a cerimônia do chá, o arranjo de flores, o caminho da espada… Apesar de nunca ter ouvido falar nada desse tipo especificamente em relação às histórias em quadrinhos japonesas, acredito que as mesmas características são válidas quando o quadrinista procura fazer as suas obras como arte. E esse é o meu propósito.
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E você, qual palavra escolheria como objetivo para este ano? Deixe seu comentário mais abaixo.
Até a próxima e fique Zen!
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